Amanhecer no mar de Quarteira
A identidade de um comunidade piscatória
Este documentário fotográfico é uma homenagem à comunidade piscatória de Quarteira e o meu modesto convite a todos os visitantes e habitantes da vasta cidade, para que se deixem levar por este seu lado tão brilhante. Uma exclamação sobre uma comunidade que perpetua o movimento que explora os recursos selvagens das águas algarvias, e que remonta pelo menos ao tempo dos romanos.
A cada vez que me sentava em frente ao mar na praia de Quarteira, não conseguia tirar da cabeça uma fotografia que o Nuno Graça, um simpático fotografo quarteirense, me mostrou. Uma panorâmica da vila de Quarteira da década de 1960. A pacatez e ruralidade desse aldeamento piscatório, disperso por entre um mar de pinheiros mansos ao longo de uma praia de areia branca com mais de três quilómetros de extensão, são de tal forma fascinantes que, ao perder-me na fotografia, lhe sinto até os cheiros no ar. Ao longo da marginal de terra batida, há uma praia que transborda vida. Pequenas barracas plantam-se aqui e ali, há gente que circula, ora por lazer, ora na azáfama da faina, e os barcos dos pescadores descansam no areal, enquanto não é hora de voltar a enfrentar o mar. Ao fechar os olhos, atiro-me para essa praia e dou por mim a caminhar por entre a alegria desse povo. Consigo sentir a areia nos meus pés e oiço claramente as vozes dos homens do mar, relatando as capturas do dia e as desventuras da faina. Não muito diferente das vozes que se fazem ouvir hoje no porto de pescas da cidade. A essência perdura.
Da marginal é quase impossível olhar para o mar e não ver um barco de pesca cercado de gaivotas, a fazer rumo ao porto, ou a navegar pacientemente para o pesqueiro onde irá celebrar mais um dia de pesca. É também daqui que me dou conta de que há um brilho especial na cidade e que passa ao lado da grande maioria dos turistas. Um brilho especial que espelha a carga de cada homem que constitui aquela que é uma das comunidades piscatórias mais curiosas da região algarvia.
No porto, onde dantes se erguia o famoso bairro de pescadores, foram construídos armazéns para dar apoio à faina. É aí que os pescadores guardam e trabalham as suas artes. Além da azáfama que se faz notar junta à lota, onde é descarregado e vendido todo o peixe que chega, estes armazéns provêem o porto de vida e mantêm a sua dinâmica acesa. Um pouco por todas as vielas que separam estes armazéns, e no espaço que circunda esta zona, há gente a cuidar das avarias que os fundos atenderam às redes, a debater-se sobre as capturas do dia e sobre os preços a que estas saíram da lota, a amanhar o peixe que vão levar para casa, há alguém a descansar, e outros que entretanto estão a chegar, há uma mesa posta para o almoço e um fogareiro em chamas que serve de pretexto para mais uma conversa e mais uma cerveja. Junto à rampa do varadouro, há ainda espaço para o estaleiro de Rui Pinto, que continua a construir em madeira uma parte considerável da frota.
Este porto é hoje um dos mais importantes de toda a região algarvia. Além de todas as embarcações ali registadas, o porto abriga um largo número de embarcações de portos vizinhos, que se servem deste porto para explorar a riqueza das águas que circundam a cidade. Na lota, todos os dias dão entrada toneladas de peixe capturadas nas redondezas. Polvo, robalo, linguado, cavala, alcorraz, salmonete, sargo, parguete, besugo, sardinha e carapau, são apenas algumas das espécies mais capturadas nas várias artes utilizadas.
Apesar da grande diversidade de espécies que dão entrada na lota, não é no peixe que Quarteira tem demonstrado o seu maior esforço de pesca. Nos últimos anos Quarteira tem dedicado grande parte do seu empenho à captura do polvo, através da utilização de armadilhas, comummente designadas por covos. No porto de Quarteira, abrigam-se hoje mais de 20 embarcações desta tipologia, das quais 14 são efectivamente de Quarteira. Um número que coloca Quarteira numa posição privilegiada no mercado do polvo.
Foi a bordo do Pérola de Quarteira que tive oportunidade de observar a arte da utilização dos covos para a apanha do polvo. Hélder Rita, o simpático mestre da embarcação e antigo presidente da Quarpesca (associação de armadores e pescadores de Quarteira) foi o meu guia e muito me ajudou a compreender melhor esta arte. Durante o embarque houve ainda tempo para um visita inesperada da Marinha portuguesa, que navega as suas fragatas pelas águas algarvias, para inspeccionar a frota e procurar garantir que a lei é cumprida.
Com um limite de covos por embarcação que varia entre 750 e 1250, dependendo da dimensão da embarcação, a apanha do polvo é das mais aliciantes por poder registar capturas durante quase todo o ano. Ao contrário da maior parte das pescas, a captura do polvo regista apenas três meses de capturas mais fracas, geralmente nos meses de Agosto, Setembro e Outubro, altura em que o polvo está na desova. Um esforço de pesca com uma expressão cada vez maior, que levanta algumas dúvidas em toda comunidade. Não só pelo esforço de pesca evidente, mas pelas milhares de armadilhas que acabam perdidas no fundo do mar. Armadilhas essas que em tempos eram construídas em barro e que hoje foram totalmente substituídas por dispositivos de ferro e plástico, mais agressivos para o meio ambiente.
Outra das artes que impõe grande dinâmica nas pescarias da cidade, embora com um numero de embarcações consideravelmente inferior, é a pesca de cerco. Uma arte que não é certamente conhecida pela sua capacidade de selecção, mas que com um pequeno numero de embarcações consegue empregar um largo numero de homens e gerar milhões ao fim de um ano. O “Poema do Mar” é exemplo dessa dinâmica. Abilinho, mestre e armador da embarcação, é um dos homens mais empreendedores de toda a frota e aquele que mais homens tem a bordo. Mantendo um ritmo de pesca muita acima da média, Abilinho garante as receitas necessárias para continuar a investir. Uma nova embarcação, maior e mais bem equipada, está a caminho e promete uma pesca mais eficiente.
Das artes aqui utilizadas, podemos afirmar que as toneiras são as que praticam a pesca mais selectiva e sustentável. Na maioria das vezes encontramos apenas uma homem por embarcação, que dirige a sua pesca quase exclusivamente à lula, por meio de uma linha e uma amostra na sua extremidade. Esta é uma arte que exige paciência e sabedoria.
Folha é um dos pescadores mais conhecidos na comunidade. Além do carinho que esta lhe deposita, todos se recordam dos seus tempos áureos enquanto jogador de futebol. Foi com ele que aprendi como funciona na prática a pesca da lula, a bordo do “Eclipse”, e como é sentir-me parte daquele filamento de luzes que se estende ao longo da marginal de Quarteira nas noites de calmaria. As luzes que, em jeito de brincadeira, os quarteirenses dizem ser as de Marrocos, aos que ali estão de visita pela primeira vez.
Por fim, a última das artes mais utilizadas pela frota de Quarteira são as redes de emalhar e o tresmalho. Ainda que não sejam também uma arte de pesca muito selectiva, as redes de emalhar não registam um grande numero de rejeições e são responsáveis por levar à lota uma grande variedade de espécies.
Embrenhado na responsabilidade burocrática duma associação como a Quarpesca, Hugo, ainda tem tempo para fazer das redes de emalhar o seu ganha pão. Quase todos os dias, ou sempre que o mar o permite, o “Tubarão Branco” sai na noite escura rumo aos pesqueiros, e aí amanhece enquanto as redes se deixam levar pela corrente, fazendo o seu papel de teia traiçoeira, emalhando a vida que aí despertava para a luz do dia.
Paulo Jorge, trocou a cozinha pela pesca, e é também um dos homens que dedica agora todo o seu tempo à arte das redes de emalhar a bordo do “Adelino Tranel”. Um homem que transpira uma loucura sã, e cujo espírito comunitário é um dom que acarta de forma evidente. Com ele, senti várias vezes que a pesca não é apenas uma forma eficaz de sustento. A alegria envolvente fez-me acreditar várias vezes que a pesca era também pretexto para juntar diariamente amigos e colegas, para almoços que podem prolongar-se por muitas horas. Durante o tempo que passei em Quarteira tive o privilégio de fazer parte desses simpáticos convívios e embarcar por duas vezes com ele e com o “Bilu”, o seu fiel companheiro de pesca. Foi aí que senti como da dureza das artes do mar se pode reaver tanta alegria e paixão.
Aquilino, é um pescador grande. Grande de coração, de estatura, grande em humildade e simpatia. Um homem do mar e das redes, das estórias e das canções. Canções através das quais dá voz ao amor e à saudade, à gratidão generalizada, à tristeza e à alegria. Além da pesca, Aquilino nasceu com o dom da cozinha. Nos almoços que prepara carinhosamente para os amigos, Aquilino canta alto com a alma, espantando os males de todos os que se sentam à mesa de sua casa.
Na essência da sua modéstia, Aquilino levou-me a conhecer o único pedaço que sobra do antigo bairro de pescadores, o pedaço onde vivia nos tempos em que o coração do bairro ainda batia forte, e de onde guarda importantes recordações. Esse pedaço é hoje o lugar onde se recolhe o “Cota Borges”, mais um ser que o planeta se orgulha de cuidar e que escolheu esse pedaço para fazer dele a sua casa. Este é um homem natural de Cabo Verde que, vivendo sorridente com tão pouco, mantém a porta de sua casa permanentemente aberta para acolher todos aqueles que o rodeiam. Entre os serviços que presta às embarcações que vão chegando ao cais, a azáfama do negócio do peixe junto à entrada do porto, e um cafezinho na simpática tasca da D. Cidália, o Cota Borges adora cozinhar ao ar livre, enquanto mata “sodade” da sua terra Cabo Verde, ouvindo no rádio os artistas conterrâneos que Portugal vai importando.
Reportagem publicada na
Notícias Magazine em Agosto de 2017.