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A ENIGMÁTICA E ESQUIVA ENGUIA 
 
No extremo ocidente da Europa, na ilha das Flores, investiga-se o comportamento desta
e
spécie desde o momento em que chega à ilha e dá início a uma odisseia de sobrevivência
nas ribeiras florentinas, partindo por fim para o mar dos Sargaços. 

Em 1923, o biólogo dinamarquês Johannes Schmidt propôs na revista “Nature” a hipótese de a enguia encontrar no mar dos Sargaços o seu destino de reprodução.

O trabalho deste investigador nórdico no oceano Atlântico e no mar Mediterrâneo demonstrou a vastidão da distribuição das larvas desta espécie e sugeriu que, no mar dos Sargaços, se con- centrariam as larvas mais jovens. O biólogo propôs que esta região do Atlântico Norte cercada por correntes atlânticas poderia ser o lugar de desova da enguia. Embora o estudo de Schmidt tenha sido pioneiro para a época, não apresentava evidências dessa travessia atlântica, pois não avistara adultos ou ovos naquelas águas. Durante um século, a comunidade científica que se dedica a esta espécie ficou sedenta de mais respostas. Em quantos meses completaria a enguia a sua rota migratória? Em que altura do ano iniciaria o ciclo? E como resistiria a uma travessia violenta num oceano de predadores vorazes?

Entre todas as espécies deste peixe que suporta variações acentuadas da salinidade da água, a enguia leva a cabo a mais longa e complexa migração oceânica. Apesar das tentativas realizadas para compreender a sua rota migratória, só nos últimos 10 a 15 anos se fizeram progressos significativos com a introdução da aplicação de transmissores de satélite. Estes pequenos dispo- sitivos colocados no dorso das enguias permitem aos investigadores receber dados de temperatura e profundidade, com os quais calculam trajectó- rias. Programados para se soltarem no final de um determinado período de tempo, emergem à su- perfície e enviam por satélite toda a informação registada ao longo desse período. 

Dedicado sobretudo ao estudo dos grandes pelágicos do Atlântico, Pedro Afonso encontrou nas enguias uma nova linha de investigação: “Grande parte da sua vida é feita nas íngremes ribeiras açorianas, mas a maior prova à sobrevivência da enguia dá-se nas águas profundas do oceano Atlântico, no último momento da sua vida”, diz. É por isso que hoje o encontramos, num grupo focado num pequeno animal. A enguia é um pei- xe escorregadio e não é fácil contê-lo para a pequena cirurgia de implantação dos marcadores. A equipa aplicou óleo de cravo como anestesia, permitindo 15 minutos de diminuição do metabolismo do animal. Com gestos precisos, implanta-se o transmissor, pesa-se e mede-se a enguia da cabeça à cauda, medindo também o diâmetro do olho e da barbatana peitoral.

O estudo, integrado nos projectos EELIAD e LifeWatch, permitiu então marcar centenas de enguias em cinco regiões da Europa: o mar Báltico, o mar do Norte, o mar Céltico, o golfo da Biscaia e a costa oeste do Mediterrâneo. Os Açores são a nova etapa para a investigação desta espécie. Embora os transmissores tenham permanecido no dorso das enguias durante seis meses até ao momento da sua libertação, a velocidade a que as enguias se deslocaram não foi suficiente para que chegassem ao fim da sua travessia antes da libertação dos transmissores, deitando por água algumas expectativas. Em contrapartida, os dados recebidos mostraram um aspecto revelador: uma convergência nas rotas das enguias marcadas nas diferentes regiões da Europa no momento em que estas se aproximam do arquipélago dos Açores.

Partindo do pressuposto de que as enguias que habitam as ribeiras açorianas também desovam no mar dos Sargaços, uma equipa liderada por Rosalind Wright, da Agência do Ambiente do Reino Unido, percebeu que as ilhas portuguesas poderiam funcionar como ponto de escala e que se a marcação das enguias fosse feita aí, os biólogos estariam mais próximos do destino final desta travessia atlântica, permitindo que os transmissores se libertassem apenas quando as enguias já estivessem no mar dos Sargaços. Entre 2017 e 2019 foram marcadas 26 fêmeas em várias ilhas açorianas. Dos 26 transmissores, 21 comunicaram por satélite com o sistema ARGOS e forneceram informação substancial sobre esta travessia. Com partida dos Açores, alguns trans- missores libertaram-se um ano depois da sua colocação, fornecendo o seu posicionamento no coração do mar dos Sargaços – a zona intuída por Schmidt há 100 anos. O grupo de investigação conseguiu assim a tão esperada prova. Os resultados foram publicados em Outubro de 2022 na revista “Scientific Reports”. Nesse trabalho de campo, os Açores suscitaram novas questões sobre este fascinante comportamento. Cem anos depois, e apesar de todos os estudos publicados, a enguia continua a mostrar-se enigmática e muitas respostas continuam a escapar entre os dedos dos investigadores.

A ZONA MAIS OCIDENTAL da Europa ficou baptizada pelos portugueses como ilha das Flores. A forma exuberante como os cubres (uma flor ama- rela) se estendiam pela encosta da ilha determinou a sua toponímia. Mas esta podia bem ter ficado baptizada como a ilha da água. Conhecida pelas suas idílicas cascatas, a ilha das Flores é um lugar 

promissor para a investigação do ciclo de vida da enguia. Ao contrário de outras regiões na Europa continental, onde a acção transformadora humana é mais evidente, a ilha é um lugar quase prístino, com pouca poluição e sem barreiras hídricas que interfiram com a movimentação das enguias ao longo das ribeiras. Contudo, estas ilhas vulcânicas oferecem outros perigos ao ciclo de vida das enguias. Para Pedro Afonso, “as grandes quedas de água e a seca intermitente de algumas zonas das ribeiras durante o Verão terão seguramente influência na sobrevivência e na necessidade de adaptação evolutiva das enguias açorianas”.

O território condiciona o movimento das enguias, e também o avanço dos biólogos é difícil nesta manhã de nevoeiro serrado, junto da ribeira de onde corre a água que sai do Poço do Ferreiro. As características da vegetação interrrompem a progressão e o mato de criptomérias e conteiras força desvios. O solo húmido abate sobre o peso dos investigadores. Para trás, fica a lagoa e a grande dúvida: poderão as enguias sobreviver a uma queda de mais de 80 metros? Até agora, não foi possível confirmá-lo.

Em Outubro de 2021 a equipa internacional liderada por Pedro Afonso (e financiada pelos projectos europeus Mission Atlantic, LifeWatch e European Tracking Network), juntando investigadores do Instituto Okeanos da Universidade dos Açores, do Instituto de Investigação da Natureza e Florestas da Bélgica e do Instituto Marítimo da Flandres, chegou às Flores pela primeira vez para levar a cabo um novo estudo com a ambição de saber mais sobre o comportamento das enguias neste habitat de características tão particulares.

Há alguns anos, uma situação invulgar no cais da vila da Madalena, na ilha do Pico, despertara a atenção do grupo de investigação: uma população de enguias estabelecera-se nas águas salgadas do cais, alimentando-se aí durante toda a sua fase de crescimento, contrariando aquele que seria o seu percurso natural: o avanço ribeira acima para se alimentar nos poços formados ao longo do curso. Poderiam as enguias dos Açores registar um comportamento híbrido na sua alimentação, variando entre o mar e as ribeiras, ou seria o caso da vila da Madalena uma mera excepção?

Para o confirmar, a equipa recorreu a transmissores acústicos implantados no abdómen da enguia e comunicando por ultrassons com 12 receptores estrategicamente colocados pela equipa ao longo das ribeiras. Trinta e sete enguias douradas (os indivíduos adultos em fase de crescimento) foram marcadas nesta primeira expedição. Com base nos dados recolhidos, concluiu-se que, depois da sua chegada à ilha, as enguias bebés (na fase “de vidro”) sobem as ribeiras para depois se fixarem, preferencialmente, em poços onde exista mais habitat permanentemente submerso, por norma abaixo das quedas de água mais fortes. Aí permanecem, alimentam-se e crescem durante grande parte da sua vida até se transformarem em enguias prateadas (a última fase de desenvolvimento, quando esta atinge a maturidade sexual e está pronta para iniciar o percurso migratório).

A observação no Pico contrariara comportamentos estudados em populações de enguias no continente europeu e que sugeriam que estas, depois de se estabelecerem, poderiam deslocar-se até um máximo de quatro quilómetros num período de 1 a 3 anos. Outro comportamento inédito agora observado nas ribeiras açorianas foi a competição directa entre enguias que ocupam o mesmo território. Os biólogos encontraram marcas em “v” na pele da maioria das enguias, comprovando esses ataques – ao que tudo indica, vestígios da luta por alimento.

Para o biólogo Pieterjan Verhelst, “a percepção de como as enguias usam a corrente é crucial para uma boa gestão das ribeiras, sobretudo na prevenção da poluição”, diz. “Deixar poluir um único poço pode conduzir à morte de um grande número de enguias.”

Por fim, com os dados recolhidos na expedição de Novembro de 2022, inteiramente consagrada à fase prateada deste animal, a equipa de investigação analisa os períodos de migração das enguias dos Açores. Atendendo a que as várias populações de enguias, dispersas geograficamente entre o Norte de África e o Norte da Noruega deverão chegar todas ao mar dos Sargaços numa altura específica do ano, terão de iniciar essa rota em alturas diferentes do ano, pois estão a diferentes distâncias do mesmo destino. Como o arquipélago dos Açores está mais próximo, a equipa quer perceber em que altura do ano as enguias prateadas dão início à rota migratória. Será mais um passo importante no longo caminho de descoberta desta enigmá- tica espécie.

Reportagem publicada na revista

National Geographic Portugal,

em Março de 2023.

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