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Moto adventure

As notícias de um mundo distante, onde ao longo da história se semearam costumes tão diferentes dos nossos, foram sempre uma enorme força de inspiração para aqueles que nasceram com o impulso da viagem. Hélder deixava o seu imaginário invadir-se pelas movimentações de um povo nómada e pelas imponentes imagens das planícies da Mongólia. Um imaginário que alimentou desde muito novo e que um dia o levou a conspirar esta grande expedição. Apaixonado pelo mundo das motos e decido a fazer-se à estrada, Hélder acaba por tropeçar noutros dois experientes pilotos, Pedro Roque e Nuno Pires. Em conversa, rapidamente perceberam que era imperdível uma passagem pelos poderosos cenários da Mongólia. Contudo, a uma viagem que atravessaria quase meio mundo, não seria difícil acrescentar-lhe o que faltava para que se ligassem os litorais atlântico e pacífico. Foi então que o Pedro sugeriu a alteração do ponto de retorno da viagem para a grande Muralha da China, em alternativa a Ulan Bator, capital da Mongólia, como sugeria a ideia inicial do Hélder.

Estava então definido o grande destino da viagem, era tempo de estabelecer etapas e traçar rotas mais pormenorizadas. Durante meses a fio, a equipa concentrou todas as forças numa batalha burocrática que parecia sem fim. Foram pedidos os vistos para todos os países pelos quais a expedição passaria, com a agravante de alguns destes preverem tempos de entrada e de saída muito curtos, obrigando a um cuidado redobrado no planeamento da rota.

À medida que se aproximava o dia da partida, aumentavam as espectativas de cada um dos elementos da equipa da expedição e a ansiedade tomava conta dos preparativos. Com a partida marcada para o dia 1 de Maio, a sair do Padrão dos Descobrimentos em Lisboa, a equipa reuniu-se com uma semana de antecedência para ultimar os preparativos. Com acampamento montado na garagem do Hélder, era tempo de fazer as últimas adaptações às 3 motos e garantir que nada ficaria para trás. Durante essa semana, dia e noite, a equipa contou com o apoio fundamental de muitos amigos que arregaçaram mangas e fizeram com que as motos ficassem prontas a tempo da partida.

Como em qualquer regresso de qualquer outra viagem, há uma distância necessária para que se crie espaço para a reflectirmos. Afinal, por mais coeso que um grupo seja, cada elemento acaba por remeter-se à sua própria viagem. Cada um deles sonhou com a aventura à proporção das sementes que colheu na vida e daquilo em que acredita. Cada um desenhou as suas expectativas, projectando no grupo ambições diferentes, moldando-o e tornando-o sempre mais interessante, mesmo quando a temperatura sobe por estimarmos verdades diferentes. No final, a única coisa relativamente previsível é o percurso a fazer, um dia de cada vez. Tudo o resto é outra estrada aberta, e é tão bonita a forma como os dias nascem e partem tão cheios de dúvidas.

Para trás ficaram dezenas de pessoas que marcaram a viagem pela forma como acreditaram nela ou como fizeram questão de fazer parte desta, tornando-a inquestionavelmente mais rica. Dezenas de cidades, centenas de vilas, aldeias e acampamentos foram rompidos e deixados para trás. Daí bebemos o que de melhor havia para beber. Em cada quarto espelhado ou poeirento que descobríamos para descansar o corpo, depositávamos largos períodos de reflexão sobre o sentido desses dias. Só assim o novo dia podia romper sem que no cair o sentíssemos vão. Dia após dia experimentámos de tão perto quanto possível as linhas com que a natureza coseu a sua poderosa geologia e sentimos como se transformava devagar, à medida que avançávamos, a forma como o homem se moldou para viver adaptado aos lugares que ocupa.

Há umas semanas alguém me pedia que lhe contasse numa frase o que estava a sentir. Eu respondi-lhe: “O planeta é um ninho de amor latente, cheio de gente boa, capaz de encher qualquer ser vivo de esperança e alegria”. A viagem pode bem transcrever o excerto de uma música dos Beatles “in the end the love you take is equal to the love you make”. Uma ideia que agora, mais do que nunca, me parece sólida e verdadeira, por ter tido a oportunidade de a sentir por todo o lado onde passámos, sem excepção.

Tudo nesta viagem nos mostrou sempre que é mais importante a viagem do que qualquer destino proposto.

O caso mais evidente foi aquele em que ao chegarmos à fronteira entre o Quirguistão e a China, nos foi negada a passagem com as motos. As autoridades conduziram-nos até à cidade chinesa mais próxima da fronteira e tivemos de lá ficar durante quatro dias até percebermos que não havia alternativa alguma senão voltar atrás. Depois de voltarmos para o Quirguistão a televisão dava-nos a notícia: um atentado terrorista tinha ceifado a vida a dezenas de pessoas e outras tantas tinham sido presas na cidade de Kashgar. A cidade onde estaríamos no sábado do atentado se as autoridades nos tivessem deixado passar. Perdemos de conta as vezes em que durante a viagem, acontecimentos inesperados nos conduziram para rumos significativamente diferentes. Por várias vezes tivemos de nos separar forçosamente e reencontrar mais à frente. Noutras situações fizemo-lo até por opção. Por vezes as viagem dentro da viagem têm mesmo que tomar tempo e espaços diferentes, para que se salvaguardem os elos mais profundos.

Reportagem publicada no

Diário de Notícias em Junho de 2015.

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